terça-feira, 3 de julho de 2012

Sou parte daquilo III


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As Sextas-feiras para mim são todas 13.
Horário escravista, sem pausa, sem jantar e praticamente sem fazer xixi. 
Trabalho em uma tabacaria no Centro Histórico de Valencia, Espanha.
Meu espaço de trabalho tem 10 metros quadrados, cercada por uma vidraça de proteção, do teto ao chão.
Me sinto como os peixinhos do aquário tieteano do Popeye (texto anterior a esse), mas a poluição nesse meu caso especifico não é a água e sim o ambiente vicioso desse lugar. 
As pessoas entram aqui com distintos olores: a maconha, a cigarro, a charuto, a álcool barato, a whisky velho, a sovaco, perfume barato, a perfume francês.

É ridiculamente irritante a quantidade de pergutas óbvias que tenho que aguentar. Um exemplo, clientes quando entram aqui e se deparam com a parede de vidro que nos separa, sempre as mesmas exclamações as mesmas perguntas: 
- ¿Madre mia hay un cristal (vidraça) aquí?
-  .......   ( O que você acha? Ilusão de óptica? si, hay un cristal!)
-  ¿Pero porqué?
-  .......    ( Se estamos abertos até as 2am porque será que tenho proteção?)
Blá, blá, blá, perguntas estúpidas...

E mais:

Clientes que entram na tabacaria e perguntam: 
- ¿Está abierto? 
-    pufffff !!!

 Dá vontade de dizer:
 - Não, estamos fechados, por favor retire-se imediatamente!

Me sinto um leão na jaula de um Zoo, rondando a área, pronto para saltar no primeiro pescoço vacilador!

Uma coisa divertida que acontece por aqui diariamente são as criaturas que entram tão desesperadas e viciosas pra comprar cigarro e batem com a cabeça, ou melhor, aplastram a cara toda contra o vidro, é hilariante. Gargalho por dentro, mas me controlo e tento confortar o "Joselito" viciado. Teve um que saiu daqui semana passada com o nariz sangrando, tamanha pancada. Esse personagem me deu pena!
Sempre tenho pouca sorte de estar aqui ajudando a catalizar a morte por câncer de pulmão e enfisema pulmonar. Contribuo involuntariamente para o aumento da contaminação mundial pela fumaça impregnada de benzeno, nitrosaminas, formaldeído y cianuro de hidrogênio. Um grande passo a obstrução de artérias, provocando cardiopatias e acidentes cerebrovasculares. Uma maravilha! Além do mais, podendo causar uma morte lenta e dolorosa!
Há um tempo atrás estava eu labutando por aqui e entra uma pequena família com um menino de uns 7 anos. Nessa fase em que as crianças aprendem a ler e estão todo tempo lendo tudo que vêm pela frente e em voz alta. O pequeno espanholzinho me olha e me pergunta em alto e bom som:

- ¿Tia! Se fumar cigarro mata, porque los viende? Disse o pirralho.

(Fingi que nem escutei... enquanto pensava numa resposta a altura.)

 - ¿Algo más señores? Disse eu, com um sorriso mais amarelo que os dentes dos pais que me olhavam em busca de uma resposta cabível! 

Eles esperando que eu dissesse algo e eu esperando que eles me salvassem!
- ...
- ????

Fiquei em estado de choque, afinal ele pensava como eu! Também me fazia a mesma pergunta. Fiquei esperançoza pela nova geração que se forma! Quem sabe esse pirralho não se torne um viciado futuramente como os pais que me olhavam com uma cara de espanto, depois olharam para o próprio filho e soltaram a melhor:

- Ni todo es tan simples de entender hijo mio! Diz a mãe.

-  Gracias! Buenas tarde! disse eu.

Fazem aproximadamente dois anos que Espanha colocou em vigor, pela terceira vez, a lei anti-tabaco, já que as leis de 2006 e 2007 foram simplesmente ignoradas. 
Mas em Janeiro de 2011 a coisa foi diferente. Estava proibido fumar em locais públicos, parques, pontos de ônibus, bares, discotecas, bem como deve ser. 
No Brasil desde 1996 a lei federal número 9.294 está em vigor e não se fuma, nem sequer no lado de fora em alguns ambientes públicos como os aeroportos. 
Na verdade quando vou ao Brasil me sinto até mal em fumar em público ou ir aos "fumódromos" porque não vejo fumantes. Em algumas tentativas de ir soltar fumaça, me encontrei sozinha no fumódromo!! Onde já se viu? 
Aqui na Espanha os fumódromos estão sempre lotados, muito mais que os ônibus e os metrôs. Tens até que pedir licença para entrar de tanta gente dependendo do lugar. Nem se pode fumar tranquila, tens que ficar cedendo espaço. 
No Brasil, até procuro se tem alguém fumando antes de acender um cigarro para não ser eu A FUMANTE que acende o primeiro. E as pessoas ainda te olham tipo: - Nossa olha ela ta fumando!! Como se fosse ilegal!

Pois bem, voltando a Espanha e a lei anti-tabaco:

Vocês não sabem o circo que se montou por aqui com a lei anti-tabaco de 2011. 
O povo todo revoltado, principalmente os velhos, fumadores de charutos, que passavam o dia todo soltando aquela fumaça fedida na cara dos outros. Esses sentiam-se ofendidíssimos. Parecia que iam morrer de tanto desgosto. 
Ainda mais quando eles entravam na tabacaria com o charutão aceso, como se a lei não existisse! Adorava essa hora! Eu, uma estrangeira, lhes mandava apagar o cigarro lá fora, senão não podia atender-los! Eles quase não acreditavam no que viam e ouviam sair da minha boca, no meu melhor castellano com sotaque brasileiro. Saíam xingando até a décima quinta geração minha e a do presidente que aprovou a lei!
Pensando bem na atual situação espanhola, inclusive os via mais indignados com a lei anti-tabaco do que atualmente com a aprovação dos maiores recortes econômicos da história do Reino da Espanha, seguido de uma subida astronômica de impostos firmada por Mariano Rajoy (Partido Popular), atual presidente espanhol.  
Crise econômica, cinco milhões de desempregados, bancos falindo, taxa de suicídio cada vez mais alta, subida de preços de alimentos, tabaco, gasolina, greve de professores!
 Agora sim eles têm motivo e direito de reclamar .

domingo, 1 de julho de 2012

Sou uma parte daquilo II

 
Esse bairro é muito particular, é como o Bairro Alto de Lisboa, melhor reformado e pior habitado. Esse Bairro é onde tudo começou, onde nasceu Valencia em 138 ac. Isso era um tipo de ilha, rodeadas pelo Rio Turia. 
No final do século XIV dc, Valencia está protegida pelas duas portas da cidade, as Torres de Quart e as Torres de Serrano, que ao redor de uma circular muralha foi se desenvolvendo o que conhecemos hoje como o bairro Carmen, o bairro “underground” de Valencia.

Bom, voltando ao meu pseudo-purgatório, meu lugar de trabalho.

Tenho como vizinhos comerciantes, um fastfood turco, um fastfood árabe, um quiosque de jornais e revistas, uma loja de eletricidade, logo em frente um, dois, quatro, cinco, seis bares, cada um para um tipo especial de estigma pessoal.
Com todos os bares tenho boa relação cliente-vizinhos mas tem um em especial que tenho que comentar aqui pois é um caso a parte. É o restaurante-bar Popeye.
O Dono, Fritz, é um alemão anarquista que veio parar em Valencia há uns quarenta anos atrás como exilado político de Berlim. O cara, hoje um senhor de aproximadamente 65 anos, deve ter sido barra pesada em sua época, não que não continue sendo hoje, justamente por isso.
O bar dele tem o seu encanto, por dentro se parece um barco podre, com um aquário grande, com uma água tão suja quanto a do Rio Tiête. Os peixes que ali sobrevivem, seguramente já sofreram mutações importantes para a pesquisa biogenética atual, pois sempre vejo ali novos peixinhos. Naquela água asquerosa, naquele bar estranho.
O ambiente é acolhedor pelo descaso de todos. Na verdade a clientela que frequenta o Popeye, incluso os próprios funcionários parecem memorabílias do local.
Eu costumava frequentar muito esse bar, havia recém chegado a Valencia depois de cinco anos vivendo na lusitana cidade de Lisboa. O pessoal alí parecia sempre muito receptivo e me adotaram rapidamente. Fiz amigos de verdade ali naquele antro.
O problema é que a partir do momento em que entras no Popeye tens que ter em mente que não vais entrar em nenhum outro estabelecimento naquele dia, vais ficar ali e ponto, tamanho o cheiro a frituras, tabaco e álcool que impregna em nossas roupas, em nossas almas, quando optas em ir ao Popeye. 
Tens que ir ao Popeye com o pensamento que a noite será larga e bizarra!
Na verdade ainda creio ser Popeye meu bar favorito aqui no bairro, mas já não vou lá com muita frequência.
No bar trabalhava meu ex-companheiro de casa Pepe, natural de Buenos Aires e Design de Jóias. Nas mesas trabalhava Margarida, natural de Montevideo e professora de Yoga; Flôr, uma valenciana multimilionária mas vivia estilo São Francisco de Assis.
Na cozinha trabalhava Katia, natural de Moscow, um personagem essa mulher. Durante o dia tem uma loja de fetiches, tudo quanto é tipo de acessórios e roupas “exóticas” para gente exótica, dragqueens e companhia. Durante a noite, estava lá ela, no John Silver a preparar pratos de salsicha alemã e a esquentar a barriga no fogão.
Mas o pessoal da cozinha não termina por aqui, havia um personagem muito estranho, na verdade creio ser o mais bizarro de todos e até hoje me pergunto o que fez o Fritz (proprietário), ter coragem de contratar aquela criatura. Enfim, a menina, se é que se pode uma palavra doce como ”menina” se aplicar áquela pessoa. Anika (de Anarquista certeza!) é um ser natural de Lima - Perú. 
Definiria Anika como uma mescla infeliz de gótica, punk, mendiga, “freak” total, animal selvagem, mãe de família e infelizmente auxiliar de cozinha.
A tipa tem dois filhos, que estão sempre com ela em qualquer lugar e a qualquer hora (quando digo “qualquer lugar” e a “qualquer hora” quero dizer o sentido mais extremo dessas palavras), inclusive quando ela vai trabalhar. 
As crianças naquele ambiente, de mesa em mesa, entre a fumaça de cigarro e maconha, entre a fritura e o álcool, como uns vira-latinhas peruanos. 
Anika devia cheirar até na tábua de cortar carne. Alterado era seu estado normal, creio que nunca ví ela sequer piscar um olho.
E as crianças ali a brincar com cinzeiros e a fazer castelos com latas de cervejas vazias.
Apesar de tudo isso, ainda assim o ambiente era genial para quem não tinha nada a perder ou para quem já havia perdido tudo.
Não esquecendo de comentar que Fritz tem como amuleto de “sorte” do bar uma perna de pau, que diz ele ser da época da Guerra Civil Espanhola. 
Pobre perneta onde foi parar! 
O Popeye sempre me surpreendeu, para bem ou para mal, mas sempre surpreendendo. Uma das coisas que sempre me surpreendem ali é a eleição da música, nunca escutei  alí algo que não me agradasse. Rock alternativo, Rock clássico, Rock alemão, Rock Espanhol, underground, psicodélico, músicas do mundo, sempre beirando o rock, o freak e o punk, nunca nada mais leve!
Semana passada me contaram que Hans, um alemão beirando os 30 anos, sobrinho de Fritz, havia morto de câncer de pulmão. Hans trabalhava ali também, mas como um substituto, na època em que Fritz foi preso durante seis meses por falta de pagamento de impostos. O rapaz realmente era  boa pessoa e também uma máquina de fazer fumaça, comprava todos os dias aqui na tabacaria duas carteiras de Camel. Pobre Rapaz.

sábado, 30 de junho de 2012

Sou uma parte daquilo I

 
Na tabacaria:
  • 7.50
  • Gracias!
  • a Ti!
  • 3.20
  • Gracias
  • a ti
  • 4,10
  • gracias
  • a ti
  • 3,95
  • gracias
  • a ti
  • 4.65
  • gracias
  • a ti
Confesso que trabalhando na Espanha durante 4 anos em uma tabacaria, meu vocabulário minguou cerca de quarenta porcento. Meu diálogo de trabalho se limitava em Gracias! Perdona? A ti! Próximo!! Buenos Dias! Buenas Noches! Buenas Tardes! Adiós! E os números claro! Preços selos: para Espanha, para Europa, para Américas. Preços de cigarros: cigarros de enrolar, de mascar, de cheirar. Papéis de enrolar: finos, grossos, grandes, curtos, estreitos, de arroz, transparente, naturais, de canhamo. Filtros: finos, filtros grandes, em caixinha, em saquinho, ecológicos, de papel. Recargas: de cartão de ônibus, de metrô, recarga de celulares, 5, 10, 20 euros. Charutos: cubanos, espanholes, canários, finos, com filtros, caros, baratos e horrivelmente baratos.

Os clientes se dividem em vários gêneros, cores e nacionalidades, grande parte deles são criaturas mil-euristas, solitárias com ou sem cachorro, gays com cachorro ou com namorados. Trabalhadores da noite: garçons, cocainômanos, prostitutas, músicos de rua. Sul-americanos explorados ou não, Africanos vendedores de bugigangas, Paquistaneses vendedores de flores. Frustrados mal educados, adolescentes iniciantes no vício, noturnos perdidos, estudantes universitários, em grande maioria italianos que não falam uma palavra de castelhano, “novos” mendigos, “velhos junkies”, bêbados crônicos, “novo pobres”, espanholes encarando a pior crise do país desde a Guerra Civil, espanhola em pleno 2012. 
Também passam por aqui muitos turistas de países nórdicos, se nota rapidamente porque são ricos, loiros, de olhos azuis, exageradamente simpáticos. Os ingleses já não tão simpáticos mas sim ricos e educados. Italianos, mais chatos impossível, creem que o mundo inteirinho fala italiano, e é óbvio, a minoria espanhola valenciana: ricos, profissionais de saúde, advogados e outros esnobes, ricos ou pobres, que passam por lá para ofender ou tratar mal alguém, principalmente se quem esta atendendo é uma estrangeira como eu, ou melhor, uma sul americana que tem a sorte de ter um emprego fixo nesta fase crítica pela qual a economia espanhola atravessa, atualmente com cinco milhões de desempregados!

Este é o cenário atual de onde trabalho, na província mais afetada pela crise atual, a Comunidade Valenciana, onde a corrupção, gastos públicos exorbitantes e inexplicáveis, são completamente esquecidos nos mês de março, quando começam as Fallas; festa tradicional Valenciana, onde os valencianos passam quase o mês todo esbanjando o que não têm. Homens, crianças e mulheres vestidas de medieval com vestidos que valem entre mil e quarenta mil euros, fogos de artifícios pela manhã, tarde e noite. Cada bairro tem a sua Falla, que consiste em uma escultura de no mínimo cinco metros de altura, construída por artistas plásticos. Os bairros enfeitados de luzes, sim, luzes! Quando digo luzes não falo de algumas lâmpadas enfeitando postes, quando digo luzes são cerca de quarenta mil luzes acesas durante o mês todo. 
Ai Valencia Minha!!! continua...

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

o Lar-birinto




10/2008

Bem, como já havia dito anteriormente, queria ser uma metamorfose ambulante...Bom, aqui estou eu... 1 mês vivendo em Valencia, Espanha. Entre tapas e queijos.
A procura de um apartamento, me sentando em novos bares, conhecendo novas pessoas, novo emprego, novos sentimentos e novos cheiros...
Me perdendo diariamente na cidade, nas calles antigas de Valência, entre torres e pontes, entre a cidade nova e velha aqui estou eu...
No labirintos das callecitas do Barrio del Carmen passo a maior parte do dia. Trabalhando, sentindo o ritmo e pensando, pensando, pensando... estar sozinha nessas novas etapas da vida è interessante porque como não conheço pessoas de confiança passo mais tempo comigo mesma. Pensando na vida, se interrogando diariamente. Porque escolhi isso pra mim? O que estou a fazendo aqui? Deixar tudo para trás de novo è andar pra frente?
Casar? Filhos? Meu grande amor? Heim?
A pressão è grande...a pressão que faço sobre mim mesma è grande...
Tem que ser assim. Tem que ser assim?
Sò Deus sabe...
E a metamorfose continua...